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abril 2021
“Às vezes, a gente pensa que precisa de um tamanho de terra absurdo, conhecimento e equipamentos específicos, mas plantar é a coisa mais básica que qualquer um de nós pode fazer. Mas ainda temos esse poder na nossa mão e precisamos defender isso. Isso está ligado a controlar o que a gente come, sem veneno. Falar que eu cuido da terra é a coisa mais equivocada. É a terra que cuida de mim. Esses novos saberes que vão limpar os nossos olhos e fazer com que a gente se conecte com a casa comum de todos nós, que é a terra”, reforçou Emicida.
Emicida finalizou sua participação dando um recado para a juventude. “Meus amigos, não estamos no tempo do desenvolvimento, mas do envolvimento. Este é o momento de se envolver mais do que nunca. Esteja aberto a escutar, a entender que existem várias formas de existir e conceber o mundo e todas têm igual valor”, declarou o rapper.
Para Bianca Santana, militante da Uneafro Brasil, diretora da Casa Sueli Carneiro e colunista da Revista Gama e do Ecoa-UOL, esse novo olhar, a conexão com a terra, também são formas de resistência e sobrevivência.
“As nossas ancestrais e nossos ancestrais indicaram os caminhos, precisamos escutar, como disse o Emicida. Os quilombos, desde o século XVI, nos mostraram a autonomia, a possibilidade de existir, de produzir vida, apesar dos que nos matam e querem a nossa morte, como acontece hoje com essa política de morte, que nos mata e deixa morrer. Muitas respostas estão aqui, na terra. É uma alegria a Uneafro Brasil ouvir esse chamado”, destacou Bianca.
Em sua fala, Bianca também destacou a importância da reforma agrária, também muito conclamada pelos comentários dos participantes, sobre a importância de movimentos, como o MST, os quilombos, entre outros caminhos que estão desenhados.
Quem já trilha esse caminho?
Algumas convidadas foram fundamentais para trazer o discurso à prática. Nilce Pontes, coordenadora do Estado de São Paulo da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), destacou que falar sobre agroecologia, território e ancestralidade é falar das próprias vivências e de como se localizar nesse contexto de mundo pandêmico.
“Para nós, está cada vez mais forte a necessidade de produzir alimento de verdade, produzir vida e falar de quanto o alimento é importante para a sustentabilidade desses territórios, como as comunidades quilombolas, e daqueles que dependem disso tudo. Temos um lema no Vale do Ribeira, que é o resistir para existir. Infelizmente, neste momento, tudo aquilo que poderia ser considerado bom, como as Unidades de Conservação e comunidades preservadoras dos territórios, têm se tornado ameaças, quando politizam e usurpam esses direitos. Há mais de 500 anos, estamos resistindo por direitos, identidade, cultura e ancestralidade”, afirmou Nilce.
A coordenadora da Conaq destacou que é importante que as pessoas entendam o que é agroecologia para cada povo, diferenças, muitas vezes, usadas para questionar as comunidades tradicionais. Aos quilombos, indígenas, para a academia e para as pessoas que estão começando a mexer com a terra, mas cada um precisa ter o seu espaço.
“Mas todos esses povos tradicionais têm um único objetivo comum que é a luta pelo território, conservação e preservação desses espaços de identidade e de resistência. Mas a forma como nos organizamos nesses territórios é diferente. E para manter essas tradições, precisamos ter nosso território regulamentado”, concluiu ela.
Exemplo destes outros formatos, porém, com o mesmo propósito, está no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Como disse durante o evento a militante Maria Alves, é necessária a união dos movimentos, pois com a agricultura familiar, por exemplo, é possível alimentar o povo.
“Estamos num momento de se reconhecer enquanto grupos, movimentos e pessoas preocupadas com tudo isso que está acontecendo. Quando a gente fala da formação humana e agroecologia, queremos dizer que é um movimento que agrega. É importante defender isso. A agroecologia não é um sistema, é um movimento, uma filosofia de vida”, afirmou ela.
“Eu falo que nasci sem-terra e continuo sem-terra, pois a terra não é mercadoria, não é propriedade, é pra plantar alimentos, viver e para as vidas se sustentarem. O sistema agroecológico vem pra dizer que temos que produzir a diversidade, independente do lucro. A produção precisa ser sustentável e solidária, não para o lucro máximo. Não podemos desrespeitar essa oportunidade de ainda termos vida. Precisaremos seguir de mãos dadas para conseguir reverter essa situação de retirada de direitos e danos sociais e ambientais”, reforçou dona Maria Alves.
Para dona Maria, a pandemia mostrou como o movimento é capaz de atender diversas famílias a partir da agricultura familiar. “Conseguimos diversas doações, marmitas solitárias, continuamos trabalhando e plantando. Quando defendemos a alimentação saudável, também defendemos preços populares e fazemos isso também com os trabalhadores das cidades, lutamos também pela merenda escolar com alimentação saudável da pequena agricultura, alimentar todo mundo, nós somos capazes”, reforçou ela.
Conforme destacou a militante do MST, existe grande pressão dos grandes atores do agronegócio brasileiro em dizer que a agricultura familiar não dá conta de produzir alimento em grande quantidade. Conforme reforçou a palestrante, 70% do que vai para as mesas das pessoas vem da pequena agricultura e assentamentos da reforma agrária, mas são necessários mais apoio e subsídio para esse setor. O MST, por exemplo, é o maior produtor de arroz orgânico da América Latina.
“Com mais apoio, avançamos ainda mais. Já temos muitas relações na academia, com outros movimentos, dando a mão para os indígenas e quilombos. A agricultura urbana tem crescido muito, como as hortas escolares, comunitárias e em linhões. É saudável e vamos lutar por isso dando as mãos. Imagina você morar em uma região, poder atravessar do outro lado da rua e conseguir uma cesta de verduras e frutas, isso é a coisa mais linda do mundo”, finalizou ela.
Mente sã em corpo são
O evento também foi uma oportunidade para falar sobre a relação entre o corpo, a terra e a mente. A psicóloga da Uneafro, Cátia Cipriano, destacou como algumas práticas integrativas, como a massagem Ayurveda, casam com saberes ancestrais e do cuidado entre corpo, mente e alma.
“A Ayurveda amplia nossos conhecimentos e faz um resgate ancestral. Eu entendo o ser de forma mais holística, o universo de olhar para o todo, e isso também envolve a questão da alimentação. Essas práticas, além de acolhimento, também resgatam os saberes de nossos avôs e avós, do cuidado da terra, das ervas e da natureza. Precisamos olhar para esse corpo, silenciar e ouvir o tambor do nosso coração para chamar a terra para dentro de nós”, destacou.
Catia apresentou ainda o Núcleo Obará, criado para mostrar como o racismo afeta a mente das pessoas. Ela coordena esse espaço de autocuidado e práticas de saúde integrativas da Uneafro.
“A Ayurveda é uma medicina indiana milenar, que já traz essa preocupação com o conhecimento ancestral e com o conhecimento do corpo como um todo, ter uma alimentação saudável e práticas energéticas. Muitas dessas práticas foram se perdendo ao longo dos anos. E isso é, pra gente, se reconectar com a nossa essência, com a nossa terra e dar saúde ao corpo. As práticas naturais foram roubadas de nós, estamos distantes de tudo isso. O Obará vem para uma conexão amorosa e efetiva entre nós”, afirma ela.
Alimentação, fome e emergência climática
Conforme explicou Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama (2016-2018), a pandemia do novo coronavírus foi causada por uma péssima relação da humanidade com o meio ambiente. Alguns líderes mundiais já estão pensando em como criar novas ordens econômicas para o futuro, mas, no Brasil, o pensamento ainda é de séculos atrás.
“O governo tem uma visão arcaica, em que os líderes veem o desenvolvimento como uma questão que você precisa destruir. Isso é uma visão de 60 anos atrás, do século XIX. E algumas pessoas acabam seguindo isso”, afirmou ela.
Para Suely, é importante que as pessoas tomem conhecimento de todos os retrocessos que o governo tem feito desde o início de sua gestão, principalmente com o “passar a boiada” do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.
“É super importante, nessa fase, no ano que vem, em que vamos discutir a campanha eleitoral, se envolver, reclamar, pedir. Eles estão destruindo coisas que vínhamos fazendo há quatro, cinco décadas”, declarou.
Segundo Suely, é fundamental praticar esse envolvimento. Uma pesquisa do IBOPE Inteligência, encomendada pelo Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio), mostrou o que o brasileiro pensa sobre meio ambiente. 77% dos brasileiros preferem proteger o meio ambiente mesmo que isso signifique menos crescimento econômico, 95% sabe que as mudanças climáticas estão aí e têm interferência humana. Mas, quando a pesquisa chega para o que os brasileiros fazem, o número é muito pequeno.
‘Precisamos impulsionar as pessoas a fazer um pouco mais e passar a mensagem da questão ambiental. Eu não acredito em reversão do governo Bolsonaro, mas na luta sim. E essa luta tem que ser ampliada, sair da redoma dos técnicos ambientalistas, assim como eu, e atingir uma porção maior da população. Acho que a população já percebeu a importância de tudo isso, precisamos ajudá-los a se mover. Educação ambiental, agroecologia e a questão racial são importantes e podem incentivar a luta pela proteção do meio ambiente”, concluiu ela.
Para concluir o evento, Sheila de Carvalho, advogada de Direitos Humanos e integrante da Coalizão Negra por Direitos, falou sobre a importância dessas lutas mencionadas anteriormente para combater a fome. Segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, conduzido pela Rede PENSSAN, mais da metade da população brasileira vive em alguma situação de insegurança alimentar e 19 milhões de pessoas passaram fome nos últimos três meses de 2020.
“Falamos hoje de trajetórias diferentes, mas que se conectam e que sonham com outro mundo, muito melhor que este que estamos vivendo. Essa relação entre comida, moradia, sobrevivência e vínculo comunitário é o que une todos nós. Afinal, as práticas do governo não só matam a humanidade de agora, mas a do futuro também”, finalizou ela.